Se viver nos Estados Unidos me proporcionou momentos de filme, como levar a Inês ao trick-or-treat, no Halloween, ou sermos convidados para uma actividade de decorar bolachas de gengibre em casa de uma vizinha, no Natal, viver na Malásia, proporciona-me outras experiências bastante diferentes. Também de filme, poderão pensar, mas num género bem distinto.
Por ser um país com uma cultura bem diferente da minha e de todas aquelas onde vivi até agora, há sempre um choque cultural à espera de acontecer. O primeiro, foi este com a minha vizinha da frente mas, praticamente todos os dias têm a sua janela de oportunidade.
Hoje, e porque a minha estadia no país está prestes a terminar, faço-vos um resumo do que é viver na Malásia com destaque para o lado bizarro da coisa.
A Malásia e algumas das suas particularidades
É com alguma surpresa que as pessoas reagem quando digo que a Malásia é um país muçulmano. A pergunta que logo se segue é: e tens que usar burka? Não, não tenho e ficariam surpreendidos pela forma como as Malaias se vestem. (E, já agora, informem-se bem sobre o que é uma burka…) Mas, se ao nível do vestuário, a mim, a religião não me causa grandes transtornos, a verdade é que é o elemento dominante da cultura local e influencia muitas outras coisas.
1. Produtos não halal: comida, mas não só
Comprar produtos alimentares mais polémicos (vinho, presunto, carne de porco, …) é possível, mas tem que ser feito em lojas específicas que nem sempre nos ficam em caminho. Por sorte, perto da minha casa há um supermercado que tem uma secção para não muçulmanos e conseguimos ter acesso a esses produtos com alguma facilidade. Mas tudo o que é comprado nessas lojas, é embalado em plástico de forma a não contaminar os outros bens alimentares e não é bem visto que ande a passear-me com esse saquinho no supermercado normal. Sob o mesmo princípio, nas lojas de calçado ou vestuário, todos os produtos contendo pele de porco (e são mais do que alguma vez pensei), também se apresentam plastificados e rotulados de forma bem visível com “contém porco”.
A primeira vez que vi uma loja de ténis em que praticamente tudo estava embalado em película aderente (como na foto), nem percebi muito bem o que se passava, mas depois ficou claro.
2. Casas-de-banho diferentes: sanita e buraquinho no chão
No centro comercial, ou noutros locais com casa-de-banho públicas, há quase sempre a opção de cubículos com sanita e outros com buraquinho no chão. Se eu estiver na fila para a casa-de-banho e vagar um cubículo com sanita, é certo que todas as muçulmanas à minha frente vão olhar para mim e me vão mandar avançar. Ao início fazia-me muita confusão, se a casa-de-banho está livre, o que é que interessa de que tipo é? Bem, pelas leis da religião, interessa. Até com que pé se entra e se sai da casa-de-banho, a direcção na qual ela está orientada, com que mão se limpam, ou que se diz ao sair, interessa. E, por mim, se me mandam passar à frente na fila, tudo bem, quero mesmo é despachar o assunto.
Ainda que, algumas vezes, sinta que me são deitados uns olhares um pouco mais pesados…mas pode ser só impressão.
3. Armanço ao pingarelho: ostentação e relação com quem serve
Um pouco por toda a Ásia, Malásia incluída, o high tea é uma refeição parecida com o brunch, mas à volta do chá e no horário do nosso lanche. É um evento visto como algo que só os mais abastados podem fazer, decorre muitas vezes em hotéis e restaurantes mais luxuosos e as pessoas vestem-se para a ocasião. A participação nesta refeição vem, por isso, quase sempre acompanhada de uma característica que vejo como comum a muitos Malaios com mais posses: uma certa necessidade de ostentação. Vulgarmente conhecida como armanço ao pingarelho.
E o que é que isso tem de bizarro? Podem estar a pensar. Bem, em teoria nada. O que me faz confusão é passar pelas famílias que comem alarvemente (nestes high teas, mas não só) e ver a forma como muitos tratam quem os serve. Sejam os funcionários dos sítios onde estão, ou as empregadas, de ar miserável, que os acompanham para tomarem conta das crianças e sem poderem tocar na comida. Choca-me saber que, a muitas dessas empregadas, apenas lhes é permitido comer o que sobra (se sobrar) e isto ser aceite por todos independentemente da sua raiz cultural ou religião.
4. Festas de portas abertas: aniversários, nascimentos e não só
Na Malásia, é muito comum que se façam open houses, ou seja, por motivo de festa, as famílias abrem (literalmente) a casa toda e convidam não só os mais chegados, mas também os vizinhos e outros simples conhecidos. É o tipo de evento muito comum no final do Ramadão, mas também em aniversários, nascimentos de bebés e…circuncisões. Leram bem, a circuncisão é um acto de muita importância na cultura Malaia-muçulmana e, descobri não há muito tempo, é não só motivo de orgulho, mas também de festa.
Embora as famílias celebrem este marco no percurso de um rapaz, nem sempre a festa inclui o acto da circuncisão em si mas, por vezes, inclui. Ou seja, as famílias mais tradicionais, convidam as pessoas para uma open house onde se assiste ao ritual completo deste acto e se celebra de portas abertas. Confesso que apenas recebi um convite para celebrar uma circuncisão e que declinei, esperando nunca mais receber mais nenhum…
5. Mulheres modernas: mas não tanto assim
Outra coisa que me continua a fazer confusão é a forma como tantas mulheres ainda aceitam a subserviência e o machismo como uma coisa normal. Mesmo das mulheres mais modernas que aqui tenho conhecido, ouço coisas que me chocam. Dou-vos alguns exemplos:
“Tenho que me ir já embora porque o meu marido vai viajar e preciso de lhe ir fazer a mala. Mas já o consegui ensinar a dobrar as coisas para trazer no regresso, porque antes, ele comprava sempre mais uma mala. Como não sabia dobrar a roupa, as coisas já não cabiam.”
“O meu marido tem sempre que ter pelo menos 3 opções de comida ao jantar: marisco, frango e borrego. É muito cansativo fazer tanta comida todos os dias, mas pelo menos ele já aceita comer sobras do dia anterior.”
“A Inês pode ir brincar ali naquela cozinha pequenina e fazer igual à mãe, lá em casa.” (a isto eu respondi, para grande admiração da outra pessoa: igual à mãe e ao pai!)
Estas palavras, que me fazem comichão, ouvi de mulheres da minha idade, inteligentes, com educação superior e viajadas. Não sendo nada muito chocante (mas sendo!), levantam o véu para outras questões mais dramáticas como a falta de oportunidades dadas às mulheres, o assédio ou, a violência doméstica, de que todos os dias se ouve falar nas notícias.
Há, claramente, um longo caminho a fazer ao nível da igualdade de géneros e das mentalidades (vejam a foto acima, de uma publicidade a um carro, com atenção), mas sei que será apenas uma questão de tempo.
Viver na Malásia, faz-me descobrir estas e muitas outras particularidades acerca do país e da cultura. Os exemplos que aqui vos dou, são de coisas menos positivas, mas não me interpretem mal. Embora isto tudo que vos conto continue a chocar-me numa base diária, este, é um país com muitos aspectos positivos e no qual me sinto bem e onde gosto mesmo de viver.
Muito, porque sei que é uma estadia temporária e porque é apenas uma cultura que me acolhe, que procuro respeitar, mas à qual não tenho que me submeter.