A fuga de Jacarta – parte II

Desinfecções obsessivas, uma quase constipação e até problemas com aviões. Se a primeira parte da minha descrição desta fuga de Jacarta para Portugal vos deixou curiosos quando à continuação da história, prometo que hoje também há emoção. Passadas apenas 7 horas desde a marcação do voo, apetrechados de máscaras e desinfectantes de várias formas, chegámos ao aeroporto. Mediram-nos a temperatura à entrada e passámos ao nível seguinte. Objectivo: conseguirmos chegar a Portugal, sem voos cancelados e sem adoecermos, já agora.

Para aliviar parte do stress da missão de fazermos a viagem sem apanharmos o bicho, eu decretei que “não é possível fazer TUDO, fazemos o melhor que conseguirmos”. Se eu fosse pessoa de lemas, este passava a ser o lema da minha vida (secretamente já é!). Seria impossível evitar que a Inês pusesse as mãos na boca, ou que tocasse em coisas que não devia e eu não queria aumentar ainda mais o stress que estávamos a viver. E assim foi, fizemos o melhor que conseguimos. Desinfectámos todo o nosso cubículo do avião onde passaríamos as muitas horas de voo até Amesterdão e tudo aquilo em que tocámos e, esperámos pelo melhor. Durante a viagem vimos de tudo, desde pessoas sem qualquer tipo de protecção ou cuidado, pessoas de máscara mas sentadas no chão imundo do aeroporto e até sacos de plástico humanos saídos de Chernobil. Cada um estava só a fazer o melhor que conseguia.

 

O nosso voo seguia até Amesterdão, com uma escala técnica em Kuala Lumpur. Depois tínhamos uma escala de 6 horas em Amesterdão e seguiríamos para Lisboa. Isto, se o voo se mantivesse. Este era outro receio que tínhamos, que o voo de ligação fosse cancelado entretanto e ficássemos retidos a meio caminho. Mas só saberíamos mais perto da hora de sair e não havia nada que pudéssemos fazer. Só esperar pelo melhor, mais uma vez. A escala em Kuala Lumpur, foi uma confusão. Desembarcámos, passámos novamente no raio-x e voltámos a embarcar. Pelo meio, tivemos que aguardar numa sala minúscula, cheia de gente, onde distanciamento social era um conceito claramente inexistente. Olhando para o painel informativo, este era um dos dois únicos voos a sair de Kuala Lumpur naquele dia e, por isso, ia bastante cheio. A tripulação, referiu-o sempre como um voo de repatriamento. Ou seja, ninguém ali estava de férias, todos queriam apenas voltar para casa. Tripulantes incluídos.

 

A viagem até Amesterdão, embora demore 16 horas, não custou muito. A Inês, mal se aconchegou na cadeira, adormeceu e só acordou já quase à chegada. É tão bom ter 5 anos, não é? Estando ela sossegada, eu e o Pedro também fomos conseguindo dormitar.  O serviço a bordo estava reduzido e dei graças por ter levado um lanchinho de casa. O maior desafio foram as idas à casa-de-banho, especialmente com a Inês, mas o truque é repetir muitas vezes “mãos no ar” e assim se evita que ela toque onde não deve. Aos poucos, nestas muitas horas de voo, fui acalmando da adrenalina dessa manhã e comecei a dar conta de algumas coisas: vesti as primeiras roupas que me apareceram, estou de cara lavada e não pus brincos. Quanto aos brincos e à cara de rabiosque, zero problema, não é muito meu mas, neste contexto, seria o menor dos problemas. Agora, quanto à roupa, estou claramente pouco vestida para andar de avião e vou morrer de frio. De certeza que vou espirrar – e receber olhares reprovadores – e, com sorte, apanhar uma constipação.

 

Na chegada à Holanda, a nossa porta de entrada no espaço Schengen, não houve qualquer tipo de controlo de temperatura, ou alguma pergunta quanto à nossa origem ou destino. Achei muito estranho. Nenhum funcionário usava máscara e isso, junto com o frio que estava naquele espaço, deixou-me muito desconfortável. Claro que me devia ter lembrado de que os 30º C de Jacarta não me iam seguir e que seria inteligente levar pelo menos uma camisola. Mas, lá está, não salvei as coisas certas. Portanto, claro que adoeci umas 30 vezes desde que deixei Jacarta e que derreti 2 máscaras com espirros. E, óbvio, paranóia Covid no nível máximo, em mim e em quem me ouvia espirrar. Quanto à possibilidade de nos vermos retidos a meio caminho, mais uma vez, no painel de informação, quase todos os voos apareciam cancelados. Mas, felizmente, o nosso confirmou-se. Não sem um pouco de emoção à mistura…

 

3, 2, 1, takeoff…só que não!

Tirando uma aterragem infernal em Bilbau, dentro de um pequeno mosquito de 9 lugares durante uma tempestade em que eu tinha o nariz entupido e me ia estourando uma veia no meio dos olhos, nunca apanhei nenhum susto de avião. Mesmo assim, não adoro andar de avião. Não tenho aquele MEDO, mas as descolagens deixam-me sempre a dizer adeus à vida. Depois passa. Estava então o nosso avião na pista, a acelerar para descolar e, naquele momento em que já quase sentimos que estamos no ar, o avião reduz abruptamente a velocidade. Eu olho para o Pedro e digo “isto não é normal, pois não?”, ele, ao contrário de todas as outras vezes em que lhe fiz essa pergunta, confirma: “não!”. Eu morro logo umas 236 vezes e, o avião, cada vez mais devagarinho, muda de direcção. Aborted takeoff. Que é como quem diz, “querias!”. Silêncio por uns minutos e finalmente o comandante anuncia algo do estilo “ah, houve aqui um problema que já vamos resolver”.

 

Como assim “já vamos resolver”? Foi o quê, alguém deixou o casaco preso na porta? Abre a porta, mete o casaco para dentro, volta a fechar e seguimos? “Pedro, diz aos homens que tu és engenheiro de aviões, vai lá ver o que se passa!”, recebi um olhar reprovador. Demos então a volta e encaminhámo-nos novamente para a pista. A esta altura, eu já me tinha esquecido da possibilidade de morte por Covid19 e, ao mesmo tempo que queria seguir viagem quanto antes, queria também sair daquele avião pelo meu pé. Se calhar ficava já ali, Amesterdão afinal até me parecia boa ideia. Nova aceleração, suspense até ao fim, sensação de rodas no ar e lá vamos nós, rumo a Lisboa. Duvidei do sucesso do voo durante uns minutos, esperei que o avião despenhasse a qualquer momento mas, à falta de estrondos ou cheiro a fumo, acalmei esses pensamentos e voltei só a sofrer de novo com tudo o resto. A verdade é que depois o voo até foi tranquilo mas esta parte depois da escala custa-me sempre muito mais do que a parte inicial.

 

Aterrámos em Lisboa num cenário desolador. Todos os aviões da TAP estacionados. O aeroporto completamente vazio. A fila para os táxis composta pelos próprios taxistas que aguardavam os clientes que não chegavam. Tão triste. Recolhemos as malas e passámos no medidor de temperatura. Achámos que seríamos abordados pela polícia, ou por alguém das entidades, mas ninguém falou connosco. Ninguém nos perguntou nada, ninguém nos informou das regras em vigor (quarentena obrigatória!). Podíamos ter ido dali para onde quiséssemos. Da 2ª Circular, vimos uma Lisboa mais vazia do que num dia quente de Agosto em que todos fogem para a praia. Estávamos em Portugal, seguros, mas as dúvidas e os receios não tinham desaparecido. Será que apanhámos o vírus na viagem, será que vamos infectar alguém agora, será que as coisas em Jacarta estão bem, os amigos que lá ficaram será que vão ficar bem, a casa, as nossas coisas, será que a escola ainda reabre, será que fizemos bem em vir, será, será, será?

 

Mais de 30 horas depois de deixarmos Jacarta, chegámos então à nossa casa de quarentena, exaustos. A casa estava tão fria que nessa noite acampámos todos em frente à lareira. Entretanto, passaram praticamente 2 meses, algumas dúvidas já tiveram resposta, outras continuam a inquietar-nos e claro, surgiram também dúvidas novas. A quem me pergunta se pretendemos voltar para Jacarta, a resposta é sim, claro. Continuamos a ter toda a nossa vida por lá. Quando? Ainda não sabemos. Por agora, estamos em Portugal. Cheios de saúde, em segurança e, embora tenhamos muitas preocupações quanto ao que nos reserva o futuro, há esta certeza: fugir foi a decisão certa. E, acima de tudo, que sorte podermos fazer essa escolha. Que sorte em termos um país que nos permite perder tantos dos receios que tínhamos há 2 meses (vou falar melhor sobre isto na minha próxima publicação). Já agora, sabiam que é possível olhar para baixo e ver as próprias bochechas? Eu descobri isso na quarentena, mas só porque estou em Portugal.  Fizemos mesmo bem.

 

 

 

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