Estou sentada no café à espera de uma amiga e, em género de balanço (nota-se muito que já me estou a despedir disto?), ponho-me a pensar nas pessoas que conheci aqui. Fazer amigos, quando se vive longe, é um processo muito diferente. Os amigos não se constroem, agarram-se. Se antes, as minhas relações de amizade careciam de tempo, vivências comuns, altos e baixos, avanços e recuos, agora, é muito diferente. Mal conheço uma pessoa com a qual me identifico e que dá sinais de retribuir esse sentimento, torna-se num amigo (numa amiga, na maioria dos casos).
Estas pessoas que conheci na Malásia, estas mulheres, para ser mais precisa, são, de todas as que conheci na vida, aquelas com quem à partida eu teria menos em comum e, se o contexto fosse outro, dificilmente nos aproximaríamos (talvez como os peixinhos da foto ali de cima). São as minhas amigas mais improváveis e gostava de vos falar sobre elas e sobre as nossas diferenças.
Amizades improváveis: as que fiz e que levo da Malásia
(decidi omitir os nomes das pessoas de quem falo por uma questão de privacidade)
A amiga que já não se sente uma local
A amiga pela qual espero agora aproximou-se de mim exactamente porque, mesmo sem me conhecer, achou que havia pontos semelhantes no nosso percurso e que eu ia perceber as angústias que ela estava a passar. É Malaia-malay, viveu uns anos na Holanda e quis voltar à Malásia porque sentia muitas saudades da família e do país. Voltou há cerca de meio ano e não se (re)adaptou. O marido conseguiu o trabalho que tinha na Holanda de volta e vão regressar para lá no início do mês que vem. A minha amiga não aguenta mais estar aqui, nem pode imaginar criar a filha numa cultura com a qual, depois de ver outros mundos, deixou de se identificar.
A amiga que cresceu na selva e estudou nos EUA
Outra amiga, Indonésia, casada com um Malaio. Cresceu na selva, isolada do mundo real, em complexos militares por causa da profissão do pai. De famílias com posses e poder, estudou nos EUA, viveu uns anos em Jakarta e mudou-se para aqui, depois de casar. Meteu conversa comigo porque me ouviu na escola a falar na mudança para Jakarta. Foi ela a primeira pessoa que me disse que eu ia gostar de viver lá e que me sossegou um pouco os receios. Tem-me dado muitas informações relevantes sobre a cidade e a cultura local e tenho a certeza que nos cruzaremos também pela Indonésia. Temos muito em comum apesar de sermos muito diferentes.
A amiga aparentemente mais conservadora
A mais rebelde de todas as minhas novas amigas é Iemenita e foi criada na Arábia Saudita. A mãe dela é Malaia-malay e ela também tem nacionalidade daqui, mas é uma dura crítica de tudo o que está errado neste país. Usa “véu”, amamenta em público, fala um Inglês perfeito e tem uma voz maravilhosa. É ela que me explica certos traços da cultura local e que me diz para nunca me sentir pressionada a fazer algo que vai contra os meus princípios só para não ofender os locais. Também me deixa sem palavras quando me descreve aquilo que a família dela passa no Iémen e a revolta que sente por ver que ninguém parece preocupar-se muito com isso.
A amiga Malaia, mas não para tudo
A mãe da melhor amiga da Inês na escola é Malaia-chinesa. Foi através da amizade das miúdas que nos aproximámos. Diz a pequena que ela e a Inês são “twin sisters”. Esta amiga conta-me a perspectiva dela de como é pertencer à comunidade Chinesa e, só por isso, não ter as mesmas oportunidades dos Malaios-malay. Fala-me do quanto têm que trabalhar a mais para ter o mesmo e a frustração de viver sempre com menos portas abertas, apesar de serem à partida todos iguais. Tenho com ela o compromisso de não deixar morrer a amizade das pequenas e de as voltarmos a juntar sempre que possível.
A amiga que mais sente as diferenças
E para terminar, a amiga que foi a nossa primeira empregada doméstica aqui. Com uma perspectiva de vida bem diferente de todas as amigas anteriores. É Indonésia de origem Indiana e, só por isso, está em clara desvantagem na escala social. Veio para a Malásia para estudar e, depois de tirar um curso técnico na área de Marketing, acabou a trabalhar como doméstica para sustentar a família. Conta-me esse lado da vida aqui e deixa-me sempre com o coração apertado. Tem a minha idade e uma filha com um mês de diferença da Inês. Sempre que olho para ela confirmo que até para nascer é preciso sorte. Ela podia ser eu e vice-versa. Deixou de trabalhar em nossa casa porque já não aguentava a relação com o chefe da empresa de limpezas. O último dia dela aqui foi uma choradeira pegada, minha, dela e da Inês.
Eu não podia ser mais diferente de todas elas e, elas todas, umas das outras. As diferenças vão desde a forma como falamos, à nossa roupa, religião, opiniões e formas de educarmos os nossos filhos ou de encararmos os principais temas que dividem o mundo. E no entanto, houve um clique. O que me aproximou destas mulheres tão diferentes de mim, foram coisas que temos em comum, mas que não vivemos necessariamente juntas. Porque não houve tempo para isso e nem sequer para testar a amizade, para perceber se é de verdade. Hoje estou aqui e amanhã já me fui embora (quase literalmente).
Poderão ser amizades de circunstância que se perderão com a minha partida, assumo essa possibilidade e vou lutar para que não aconteça. O certo é que são pessoas com quem desenvolvi uma empatia muito grande e que, no tempo que aqui passei, não só nunca me falharam quando precisei, como me proporcionaram bons momentos e acima de tudo, graças a tantas diferenças, muitas aprendizagens. Porque nisto de termos uma vida itinerante, não é só a Inês que cresce num contexto cultural enriquecedor e que desenvolve uma terceira cultura, nós, os adultos também mudamos (para melhor) a forma como vimos o mundo até então.